Em Kiev, capital da Ucrânia, uma emocionante praça abriga um museu em memória das vítimas do HOLODOMOR, o genocídio soviético que literalmente significa “matar de fome” e que foi responsável pela morte de 7 milhões de ucranianos. Eu estive lá e conto esta história
Em 1917 cai o Império Russo, os bolcheviques tomam o poder e a Ucrânia, que havia ficado por mais de 200 anos dividida entre o Império Russo e o Austríaco, via a chance de ser uma nação independente. O sonho se realizou ainda em 1917 com a criação da República Popular da Ucrânia, uma república parlamentarista.
A Ucrânia era conhecida por seus campos férteis de terra boa que já eram explorados na época do Czar, era o “celeiro da Europa”. Lenin, ao assumir o “trono” da Rússia, sabia disso e não queria abrir mão do que seria mais tarde chamado de “celeiro soviético”, e partiu para a briga.
O povo ucraniano, envolto de enorme nacionalismo e desejo por independência, resistiu o máximo que pôde, mas não conseguiu vencer o Exército Vermelho, vindo em 30 de dezembro de 1922 ingressar a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) com o nome de República Socialista Soviética Ucraniana. O tratado da união exigia a igualdade total das repúblicas, mas a Ucrânia era, na verdade, controlada pelo Kremlin.
Este acordo foi realizado por um governo fantoche e não representava o desejo do povo ucraniano, que sempre teve em sua identidade o nacionalismo e o individualismo, características que iam totalmente contra a ideologia comunista da URSS, e não demorou muito para começar a haver descontentamento por meio dos agricultores ucranianos.
Atento a isto, em 1923 Lenin promoveu o que seria chamado de “ucranização” que era uma forma de incentivar a retomada do idioma e da cultura ucraniana, que foram tirados deles na época em que eram território Russo e Austríaco, tentando assim conquistar o apoio ao regime soviético. Vale lembrar que este era o período que vigorava a Nova Política Econômica (NEP), que foi um período mais liberal do regime soviético que objetivava desenvolver os negócios e a economia.
Após a morte de Lenin, Stalin assumiu a liderança da URSS e tanto a NEP como a “ucranização” foram encerradas. O Homem de Aço tinha outros planos para desenvolver a indústria e a economia da URSS, era o plano quinquenal, onde todos os esforços do país deveriam ser canalizados para a rápida industrialização e às forças armadas.
Para conseguir o crescimento rápido e exponencial que Stalin desejava para os próximos 5 anos, era necessário ter muitos recursos financeiros que só poderiam vir através da exportação. E o que a URSS tinha na época de valioso para exportar? Grãos da Ucrânia.
Stalin sabia que os ucranianos eram arredios ao regime comunista, sabia também que os líderes dos movimentos nacionalistas e de independência eram os grandes fazendeiros, conhecidos por Kulaks. Em 1925 Stalin escreveu: “Os camponeses constituem o principal exército do movimento nacional… Sem um exército de camponeses, não existe e não pode existir um movimento nacional forte. É isso que querem dizer quando afirmam que a questão nacional é, na verdade, uma questão dos agricultores”. Stalin sabia que, se bem organizados, os camponeses nacionalistas ucranianos poderiam ser um grande problema para a URSS e para o seu plano de desenvolvimento rápido que dependia basicamente da exportação de grãos ucranianos.
Em Kiev os jovens já não falavam mais russo e o contato com suas origens e sua história estava se reestabelecendo. Uma eventual união destes jovens com os kulaks poderia ser um grande problema para a URSS, e isto fez com que Stalin agisse rápido no processo de coletivização das fazendas ucranianas.
Naturalmente houve grande resistência por parte dos Kulaks. Em 1930, mais de 4.000 levantes, envolvendo 1,2 milhão de aldeões ocorreram em toda a Ucrânia soviética. Há relatos de que os ucranianos iam para as batalhas cantando o Hino Nacional Ucraniano que diz “A Ucrânia não morreu”. Mas todos foram esmagados pelas tropas soviéticas acompanhadas de mais de 25 mil jovens estudantes comunistas que foram enviados para acompanhar a coletivização das fazendas.
Relatos de sobreviventes contam que os oficiais soviéticos chegavam nas casas e colocavam todos para fora dizendo “esta casa não pertence mais a vocês”, famílias inteiras, com crianças, eram lançadas para a rua no rigoroso inverno enquanto os oficiais bolcheviques tomavam seus bens, suas casas e suas colheitas.
Cerca de 285.000 famílias kulaks, compreendendo perto de 1 milhão de pessoas, foram deportadas da sua própria terra natal em meados da década de 1930, tendo todos os seus bens confiscados. Padres, escritores e líderes locais eram presos ou assassinados. O terror soviético estava apenas começando.
Até mesmo os pequenos fazendeiros se rebelaram. Alguns, antes de fugirem para locais inóspitos da URSS, pegavam o que conseguiam de pertences e incendiavam todo o resto, não deixando nada para os soviéticos. Era um período de grande revolta e indignação.
Esta escalada de Stalin contra os kulaks servia basicamente a três propósitos: um alerta para aqueles que se opunham à coletivização, um meio de transferir as terras confiscadas para as fazendas coletivas e um meio de eliminar as lideranças locais.
Aqueles que não conseguiram fugir tiveram de aceitar o status de escravos do novo regime, trabalhando agora para o estado em troca de um salário que só seria pago caso conseguissem atingir a meta de produção estipulada pelo Kremlin, o que também daria a eles o direito ao excedente de produção para consumo próprio ou venda.
Em junho de 1931, a Ucrânia atingiu sua cota para 1930, e só conseguiu isso esvaziando todas as suas reservas de grãos, deixando os trabalhadores enfraquecidos e desnutridos. As cotas eram aumentadas artificialmente para “motivar” os produtores, e como seus pagamentos só eram realizados caso atingissem as metas, acabavam ficando sem sua produção e sem pagamento.
No final de 1931, nem uma única aldeia na Ucrânia teve a chance de atingir a alta cota de grãos estabelecida pelo governo. Não havia mais incentivo para se trabalhar duramente na produção. Absolutamente todo tipo de comida era confiscado, desde seus animais, até batatas ou hortaliças que fossem encontradas nos armários das cozinhas. Nada era ignorado.
Visando a exportação e o desenvolvimento da indústria, muitas fazendas também foram obrigadas a produzir algodão e outros cultivos não alimentares, o que comprometia ainda mais as chances de conseguirem comida. Além disso, Stalin ordenou que 2/3 de todo grão consumido na URSS deveria vir da Ucrânia, uma meta simplesmente impossível.
Em agosto de 1932, a “Lei das Cinco Espigas”, afirmava que qualquer pessoa, mesmo uma criança, pegando qualquer produto de um campo coletivo, seria considerada “inimigo do estado” e poderia ser fuzilada ou presa por roubar “propriedade socialista”. No início de 1933, cerca de 54.645 pessoas foram julgadas e condenadas, desses, 2.000 foram executados.
Para intensificar a fome na Ucrânia, o Politburo da URSS, sob pressão de Molotov, em 18 de novembro de 1932 adotou uma resolução que introduzia um regime repressivo chamado de “lista negra” que impedia um cidadão da URSS de transitar para fora do seu bairro caso não atingisse sua cota de produção. Foi criado um sistema de “passaporte” que no primeiro momento era entregue a quem conseguia atingir as metas, mas como em pouco tempo ninguém conseguia atingir estas metas, todos tiveram seus passaportes confiscados.
Esta regra só foi aplicada na Ucrânia e em Kuban (uma região com predominância de ucranianos imigrantes), onde tropas tomavam as estradas e cercavam todo o território impedindo qualquer pessoa de sair de lá. Ou seja, havia flagrante intenção de Stalin de matar por inanição uma população com base na sua etnia e região, o que enquadra claramente na tipificação de genocídio.
De acordo com o Museu do Holodomor de Kiev, há cerca de milhares de documentos que confirmam que houve deliberada intenção de promover a fome na Ucrânia como forma de matar o povo para conter contrarrevolucionários. Estudos atuais também apontam que não havia nenhuma razão climática significativa na época que justificasse a grande fome, ou seja, o único responsável pela grande fome era o estado.
Enquanto os ucranianos morriam, o Estado soviético extraia 4,27 milhões de toneladas de grãos da Ucrânia em 1932, o suficiente para alimentar pelo menos 12 milhões de pessoas durante um ano inteiro. Os registros soviéticos mostram que, em janeiro de 1933, havia reservas de grãos suficientes na URSS para alimentar mais de 10 milhões de pessoas.
Em 2 de Julho 1932, uma correspondência de Stalin para seus aliados mais próximos em julho e agosto de 1932 fornece evidências de que o governo soviético planejou punir a Ucrânia: “Preste tanta atenção à Ucrânia quanto possível… tome todas as medidas necessárias… para isolar diplomatas lamentáveis e podres e garantir que uma decisão verdadeiramente bolchevique seja tomada”.
Em 7 de agosto de 1932 foi emitida uma Resolução pelo Comitê Central que ordenava “a repressão rápida e punição impiedosa de elementos criminosos entre os gestores de fazendas coletivas”.
Em 1o de janeiro de 1933, Stalin enviou um telegrama aos fazendeiros ucranianos no qual ameaçava abertamente usar “as mais severas medidas de punição” contra todos os fazendeiros que não entregassem voluntariamente os grãos que supostamente estavam escondendo do estado. O telegrama acusou agricultores ucranianos de sabotagem e autorizou buscas em massa e apreensão de recursos alimentares restantes.
Possuir comida virou um crime e motivo para prisões e execuções, mas não só isso. Em março de 1933, trinta e cinco funcionários públicos do Comissariado da Agricultura foram executados depois de ter menos de um dia de julgamento por acusações ridículas, como ter “deliberadamente permitido que ervas daninhas crescessem nos campos”, ou “encorajando a propagação da meningite entre os cavalos”.
A morte já fazia parte do cotidiano dos ucranianos. Na ausência de comidas, cães, gatos, grama, tudo virava alimento. Casos de canibalismo eram contados a todo canto, motivo pelo qual era perigoso crianças saírem pedindo comida pois poderiam ser mortas e consumidas.
A população estava já acostumada a ver corpos de pessoas que morreram de fome pelas ruas. Carroceiros passavam recolhendo os corpos das ruas ou batendo de porta em porta perguntando se tinha alguém morto ou moribundo para levá-los para valas comuns. Não era incomum levar pessoas ainda com vida e empilhá-las junto com outros corpos. Elas estavam fracas demais para sobreviverem.
Mães colocavam seus filhos em trens sozinhos, contando com a sorte de que poderiam ser adotados por alguém na cidade e sobreviverem, pois sabiam que se ficassem a morte era certa. Milhares destas crianças foram morar nas ruas das grandes cidades, como Moscou. Logo elas se tornariam um problema para a imagem de prosperidade que o regime comunista queria exportar para o mundo, o que fez com que Stalin reduzisse para 12 anos a maioridade, desta maneira, estas crianças agora poderiam ser julgadas e condenadas como adultos, e fuziladas.
Diferentes associações e comitês ucranianos que lidam com o Holodomor concordam que no auge da fome, os aldeões morriam a uma taxa de 25.000 por dia. Eles também sugerem que a população ucraniana pode ter sido reduzida em até 25%. Eles especialmente apontam que até 80% dos intelectuais da Ucrânia, entre eles mais de 200 autores ucranianos e 62 linguistas morreram, foram liquidados ou desapareceram.
A URSS continuava a exportar grãos para financiar seu projeto de desenvolvimento, enquanto rumores de que pessoas na URSS estavam passando fome começavam a avançar pelo mundo. Nesta época, não havia informação exata de onde poderia haver fome, apenas sabiam que era na URSS.
Ajudas humanitárias eram negadas sob a justificativa de que não existia nenhuma fome, que eram apenas boatos anticomunistas. As poucas doações que entravam na URSS eram confiscadas e nunca chegaram para os ucranianos.
Em fevereiro de 1933 o governo local da Ucrânia recebeu uma ordem por escrito que dizia que todas as organizações, exceto a GPU (polícia secreta da URSS), estavam proibidas de manter registros sobre fome ou morte por fome. Foram orientados a colocar na certidão de óbito a causa da morte como “velhice” ou “gripe”, e ainda foram ordenados a enviar todos os registros de óbitos para unidades especiais, onde foram destruídos.
Alguns políticos, jornalistas e entusiastas do socialismo de outros países eram convidados para Moscou para “ver com seus próprios olhos” que não havia fome na URSS. Eles relatavam muita fartura nos restaurantes e por todo lugar que tinham passado. Mais tarde alguns destes jornalistas viriam assumir publicamente que foram convidados para promover a propaganda soviética e que, por serem entusiastas na época, aceitaram escrever sem se aprofundar adequadamente no caso.
Só com a queda da URSS é que documentos sobre o Holodomor puderam ser examinados e a história ser contada para seu próprio povo, agora, sem o controle de narrativa do estado, puderam entender o horror a que foram submetidos. Em 2006 a Ucrânia pôde finalmente reconhecer este terrível momento da sua história como um genocídio.
Provas do Genocídio Soviético
- 3456 documentos do governo e do Partido Comunista, incluindo aqueles assinados por J. V. Stalin;
- 3.186 livros de registro de óbitos de 1932–1933, confirmando a perda massiva de população devido à fome artificial;
- 1.730 depoimentos de testemunhas e vítimas de atos criminosos do regime totalitário;
- 857 valas comuns onde as vítimas do genocídio foram enterradas;
- 735 assentamentos, fazendas coletivas, conselhos de aldeia e regiões da Ucrânia, onde as autoridades introduziram o regime de “quadros negros”;
- 400 documentos encontrados e desclassificados do Arquivo do Estado da SSU, confirmando que as autoridades organizaram a fome artificial;
- documentos de arquivo de missões diplomáticas de países estrangeiros;
- documentos de arquivo que testemunham a migração em massa de russos étnicos na Ucrânia;
- fotografias que fixaram os eventos trágicos do Holodomor.
Sete milhões de vidas foram deliberadamente ceifadas para desenvolver e levar prosperidade para um outro povo. Sete milhões de pessoas morreram lutando pelo direito de poder comer aquilo plantaram. Sete milhões de vidas estão hoje representadas apenas por uma garotinha magra, de olhar profundo, agarrada a um punhado de trigo.
ALGUMAS REFERÊNCIAS
https://holodomormuseum.org.ua/
https://edinburgh.mfa.gov.ua/storage/app/sites/86/imported_content/5df3d0b0b533f.pdf
https://arrow.tudublin.ie/cgi/viewcontent.cgi?article=1138&context=ijass
https://cla.umn.edu/chgs/holocaust-genocide-education/resource-guides/holodomor
https://www.youtube.com/watch?v=IHm_1uN80s0