A Coreia do Norte é socialista, o que significa que o país foi redesenhado e totalmente reestruturado para acabar com diferenças sociais causadas pelo capitalismo, buscando a igualdade entre as pessoas. Para os norte-coreanos, isso é motivo de orgulho, como ressaltam constantemente. Turistas são proibidos de levar qualquer tipo de material, como livros, folhetos ou matérias de revistas que falem mal do socialismo. Nós fomos exaustivamente orientados a não questionar o socialismo em momento algum e seguimos essa regra à risca para ter um bom convívio com os guias.
Começo este post ressaltando esse aspecto pois a questão da igualdade é ferozmente defendida na teoria, mas não encontra concordância com a prática. Não posso dizer que é uma hipocrisia, pois não dá para saber exatamente o que as pessoas pensam, já que algumas acreditam realmente no regime, enquanto outras, para não perder privilégios, o defendem em um misto de medo e conivência. Mas, um fato ficou evidente: o regime, definitivamente, não preza pela igualdade.
Vitrine
Como abordei neste post, durante a Guerra Fria, o mundo ficou dividido entre o Capitalismo e o Socialismo. Nesse cenário de guerra ideológica, ambos queriam ostentar grandes feitos, poder, cultura, força e felicidade e, para tanto, investiam fortemente na propaganda externa.
Pyongyang é uma cidade vitrine, feita para fazer propaganda do regime dentro do país e, principalmente, fora. Prédios suntuosos, monumentos enormes, imensos museus e muito “luxo e conforto” são ostentados como se todos os cidadãos pudessem usufruir de todas as benesses, sem qualquer distinção de classe social e sem custo algum, tudo gratuitamente dado pelo estado aos cidadãos.
No entanto, quando se sai de Pyongyang, percebe-se o abismo que existe entre a capital e o restante do país. A propaganda de sucesso do regime que Pyongyang representa não condiz com a realidade da grande maioria da população.
Como abordei neste post, a capital oferece muitos recursos que tornam a vida do norte-coreano que vive em Pyongyang mais próxima da vida de quem vive em uma cidade mediana de um país capitalista. Quem mora lá tem até parque aquático, enquanto para quem vive no restante do país o acesso a alguns tipos de vegetais já é um grande privilégio.
Para um país que ostenta a igualdade, isso é um tremendo contrassenso. Como certa vez um amigo me disse, “se no socialismo todos são iguais, então quem irá morar na casa de frente para o mar?”. A resposta está na elite, em outros países socialistas formada basicamente pelos membros do Politburo, que também existe na Coreia do Norte, mas onde a desigualdade é representada principalmente pelo sistema de castas chamado Songbun.
Songbun
Songbun é o sistema introduzido pelo Partido para determinar o nível de dedicação que as pessoas tem para com os grandes líderes, o partido e o regime como um todo.
Baseado no histórico de cada família, a sociedade foi dividida em três grupos: Amigáveis, Neutros e Forças Inimigas. Ou seja, um sistema de castas baseado em como cada família se relaciona e apoia o regime e o governo. Os altos escalões são reservados às famílias que tiveram participação nas guerras, na fundação do partido ou no seu apoio. Os neutros são aqueles que não tiveram nenhuma relevância histórica, mas são submissos ao regime e não representam ameaça. Já as Forças Inimigas, ou “Hostis”, são aqueles considerados um risco ao regime, por exemplo, ex-proprietários de terras, negócios ou bens de produção que foram confiscados quando o socialismo foi implementado. Segundo a CIA, 30% da população pertence à elite, 40% são neutros e 30% são hostis.
Embora o sistema seja baseado nos fatos históricos, existe um controle individual que é atualizado a cada dois anos para cada cidadão com mais de 17 anos. A pontuação do Songbun de cada pessoa raramente aumenta, no entanto, pode sofrer alterações para baixo dependendo de diversos fatores, como: com quem ela se casa, seu entusiasmo político e se ela ou algum membro da família comete algum tipo de crime.
A partir da década de 90, o Songbun começou a perder importância para o povo norte-coreano em geral, sendo relevante apenas para o mais alto escalão do governo. Com o colapso do socialismo na Europa, a aproximação com a China se tornou mais intensa e diversas empresas chinesas abriram indústrias na Coreia do Norte. Dessa maneira, trabalhar em uma delas dá a estes cidadãos um status social mais elevado e, consequentemente, são considerados a nova elite do país, com acesso a bens de consumo que outros não têm – inclusive, alguns podem viajar para a China a negócios e trazer bens de lá, como os muitos que vimos no trem na vinda.
Atualmente, a riqueza individual obtida por trabalhar em empresas chinesas ou serem da classe Donju (Mestres do Dinheiro) – uma nova categoria de empreendedores norte-coreanos que consegue desenvolver negócios dentro do país com anuência do regime de Kim Jong-un, envolvendo muita corrupção – tem tido mais importância social do que sua pontuação no Songbun. No entanto, apenas isso não basta para ser da elite, uma vez que determinados bens, como celular e automóveis, são fornecidos pelo Estado mediante boa justificativa e ótimo relacionamento político, ou seja, seu Songbun irá contar ao definir aonde você irá morar e quais bens da elite você poderá ter.
Os Privilegiados
Morar na capital é um privilégio que apenas uma parcela pequena da população tem. Quando perguntei para a guia se era permitido a alguém que mora no interior do país mudar-se para Pyongyang, ela me informou que as pessoas não costumam mudar-se de onde nasceram, sequer têm esse desejo. Porém, caso queiram, terão de justificar e solicitar uma autorização ao governo, que irá avaliar a real necessidade para aprovar a mudança.
É importante lembrar que as pessoas não são donas de suas próprias casas e não podem comprar um imóvel, logo, mudar-se de cidade implica, por parte do governo, na disponibilização de outra casa, agora na nova cidade.
Viajar livremente entre cidades já não é permitido para o norte-coreano, sendo necessário justificar e requisitar uma autorização junto ao governo, então, imagine a dificuldade que não deve ser conseguir mudar de cidade. Assim, Pyongyang acaba sendo um reduto da elite do país, blindada dos “pobres” de outras cidades que sequer podem visitá-la livremente, quem dirá mudar-se para lá. Segundo a guia, se não houvesse esse controle, todos iam querer morar em Pyongyang. Claro!
Automóveis, assim como celulares, são presentes do governo dados a quem justificar real necessidade. O curioso é que algumas pessoas conseguiram justificar a necessidade de ter uma BMW ou uma Mercedes com motorista particular, ou a necessidade de realizar viagens para a China para fazer compras, como um senhor que estava na mesma cabine que eu no trem de ida e levava mais de cinco mil dólares em artigos declarados na alfândega.
Os professores compõem uma classe com alguns privilégios. Embora tenham salário inferior ao de um trabalhador, têm descontos em lojas e, normalmente, as melhores casas populares são destinadas a eles. Quando o novo bairro de professores foi inaugurado com belos prédios novinhos e ótima estrutura de lojas e mercados, houve uma grande procura de pessoas querendo se casar com professores. Esse bairro é o mesmo onde moram os artistas, ou seja, as celebridades do cinema e da música no país. Em resumo, é o “Leblon” deles.
Os professores são muito respeitados, pois levam conhecimento às pessoas – e essa é uma das três principais bases do regime. No entanto, no meu entendimento, o valor do professor não está em levar o conhecimento crítico ou ensinar habilidades técnicas, mas, sim, em doutrinar e difundir os preceitos do partido e a Ideia Juche, que induz o culto ao líder e a total submissão ao regime. Dessa maneira, para a manutenção do regime, eles são mesmo importantíssimos.
A massa
A principal crítica que o socialismo faz ao capitalismo é a mais-valia, ou seja, a parcela apropriada pelo proprietário dos meios de produção do trabalho de outra pessoa. Isso significa que o dono de uma empresa toma do seu funcionário parte do resultado do seu trabalho e enriquece com o trabalho dos outros. Nesse sentido, como no socialismo todos os meios de produção são do povo (do estado), não existe a mais-valia e todo o esforço do trabalho é devolvido para o próprio trabalhador. Na teoria.
A conta de todos os privilégios da elite que mora em Pyongyang é paga com o suor de todos os trabalhadores do país. Quem trabalha no campo ou na construção civil e passa a vida comendo arroz e vegetais tem boa parte de seu trabalho apropriado pela elite, que terá carro, celular e poderá comer churrasco de pato ou ir esquiar nas férias. As massas pagam a conta da elite, mas não conseguem enxergar isso.
Em um dos momentos mais curiosos da viagem, nós comentamos que pagamos cerca de 30% do nosso salário em impostos e temos que comprar casa, pagar por estudo e saúde porque os serviços públicos são precários. A guia nos convidou a morar na Coreia do Norte, pois lá eles não pagam impostos e têm tudo de graça.
Definitivamente, eles não são ensinados a fazer conta. Eles acham que não pagam imposto sendo que, na verdade, 100% do seu produto de trabalho é tomado como imposto. Eles acreditam que ganham comida, saúde e educação de graça, mas não param para pensar de onde vem o dinheiro para comprar esses serviços. Como diria Milton Friedman, “não existe almoço grátis”, mas eles não sabem e nem saberão quem é o autor, pois o governo jamais permitirá.
Pyongyang significa “Planície” ou “Terras Planas”. Os norte-coreanos tentam aproveitar tudo o que podem de seu território. Com apenas 20% de suas terras em áreas planas onde é possível praticar agricultura, os trabalhadores rurais precisam dedicar-se muito para extraírem o máximo que puderem das terras. Eles reutilizam o solo na entressafra de arroz para cultivo de milho e tabaco. No inverno, quando não é possível cultivar nada, trabalham na estocagem e na produção de maquinário agrícola, porém, não estou falando de colheitadeiras ou tratores, mas de enxadas, foices e carros de boi. Toda a produção agrícola do país é artesanal, o que demanda ainda muito mais esforço físico dos produtores rurais.
A igualdade tão defendida e propagada na Coreia do Norte não corresponde à realidade. Sob o pretexto de livrar a população da exploração capitalista, a elite política do país explora as massas e investe fortemente no convencimento, na manipulação e na repressão para que não se rebelem contra o governo.
O que ficou evidente nesta leitura sobre a questão da igualdade na Coreia do Norte é o fato de que as pessoas não têm a possibilidade de ascender socialmente a menos que aprovem o regime e dediquem-se exaustivamente em apoiá-lo e elogiá-lo, bem como, óbvio, ter ótimos relacionamentos políticos.
É claro que o capitalismo tem seus problemas e, muitas vezes, a desigualdade cria pontos de partida injustos entre pobres e ricos, como o caminho para o sucesso de alguém que nasceu em uma família estruturada e teve boa educação e saúde, que será muito mais curto e fácil do que para o menino pobre da periferia que teve uma família desestruturada, fome, saúde precária e tantas outras dificuldades. No entanto, por mais difícil que seja, por mais que exija um esforço muito maior, ele ainda terá a possibilidade de ascender socialmente por seus próprios méritos. Ele não precisará abandonar seus princípios, vender sua opinião, adular pessoas que não gosta para, quem sabe, ter direito a algum tipo de vegetal reservado apenas às pessoas de uma determinada classe social.
No próximo post, irei falar sobre a bolha em que os norte-coreanos vivem e que é totalmente controlada e manipulada pelo governo.
Coréia do Norte – A Bolha (Parte 9)
Começar a série pela Parte 1 (Mitos e Verdades)